Ha pouco mais de uma decada, no engatinhar dos anos 2000, tinha inicio o concurso chamado, genericamente, de Carnaval Virtual: destiles de escolas de samba ficticias, criadas, em regra, por jovens amantes da folia "real" que desejavam expandir o gosto pelo universo carnavalesco aos dominios da Internet. Desde entao, as agremiacoes fundadas por internautas destilam anualmente (no contrafluxo do carnaval oficial de fevereiro/marco, geralmente em julho ou agosto) em passarelas desenhadas por webdesigners e colocadas a disposicao dos navegadores em sites especialmente projetados para o concurso. Nas avenidas de megabytes nao aparecem destilantes vivos, mas desenhos (digitais ou a antiga, produzidos sobre papel) de fantasias e alegorias, especie de estudo ou projeto para um destile prestes a atravessar a Passarela do Samba carioca ou qualquer outro sambodromo de concreto. A exemplo do carnaval das escolas de samba com destilantes de carne e osso, disputas de samba de enredo sao organizadas, mobilizando compositores de todo o pais; posteriormente, albuns com as composicoes escolhidas sao gravados em estudios e disponibilizados para download. Competicao que e, cinco quesitos sao analisados pelo corpo de jurados previamente selecionado pelos organizadores: alegorias e aderecos, fantasias, enredo, samba de enredo e conjunto.
Ana Maria Alvarenga e Isabela Frade (2011, p.157), no artigo Cyberfolia e os novos modos de presenca carnavalesca, enfocam o processo de "progressiva virtualizacao do carnaval", algo que inicialmente perpassava a transmissao televisiva dos destiles das escolas de samba (as edicoes realizadas pelos programadores e a aplicacao de intervencoes virtuais nas imagens captadas pelas lentes, procedimento exemplificado pela mulata Globeleza, uma "sambista ciborgue" virtualmente concebida para representar o carnaval da TV Globo) e hoje atinge outros espacos, como as passarelas virtuais, os grupos de discussao e os chats. As autoras entrevistaram o antropologo Ricardo Barbieri, participante do carnaval virtual desde seu advento, e elaboraram uma serie de apontamentos sobre a cyberfolia. De acordo com Barbieri, "tudo comecou na Internet como uma brincadeira na sala de bate-papo mIRC, em que amigos interessados em carnaval e samba propuseram a criacao de um concurso de enredos virtuais" (p. 158). A ideia ganharia novas dimensoes a medida que o dominio das tecnologias digitais disponiveis aumentava, atraindo artistas dispostos a fazer do concurso uma apresentacao de desenhos; aos poucos, elaboraram-se simulacoes de destiles de escolas de samba na tela do computador, com ilustracoes estaticas de fantasias e alegorias. Nos termos das pesquisadoras, "a brincadeira vingou e resultou na realizacao de pequenos destiles que eram julgados por suas producoes iniciais" (p. 158).
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Comparacoes com o carnaval real das escolas de samba cariocas sao inevitaveis. Felipe Ferreira (2012, p. 142), no artigo O misterio das escolas de samba, mostra o quao estranho e o fato de um regulamento "oficial" ter sido elaborado "apenas um ano apos o primeiro concurso divulgado oficialmente", em 1933. A hipotese apresentada pelo pesquisador faz referencia a ideia de que as escolas de samba, numa imbricada rede de estrategias de sobrevivencia, precisaram, ja em seu nascimento, abracar o conceito de "tradicao" (expresso, por exemplo, na obrigatoriedade de ala de baianas e na proibicao do uso de instrumentos de sopro nas baterias), a fim de se fortalecer como instituicoes frente ao "grande carnaval", branco e pouco afeito as manifestacoes negras e populares dos morros e dos suburbios. Observa o autor que "a 'tradicao', neste caso, e o resultado da negociacao entre os costumes criados e vivenciados pelos primeiros sambistas e a ideia que a sociedade do 'asfalto' tinha deles" (p. 145). No caso do carnaval virtual, o problema ganha novas tonalidades; afinal, a "brincadeira" surgiu numa epoca em que as escolas de samba ja estavam consolidadas enquanto instituicoes da cultura popular brasileira. Qual a necessidade, entao, de um regulamento rigido?
Outro vies do antagonismo Liesv x Virtua (com ecos na geogratia cultural) e levantado por Ana Maria Alvarenga e Isabela Frade: a primeira liga concentraria paulistas; a segunda, em sua maioria, agregaria cariocas. Trata-se de uma visao bastante restritiva e pouco fundamentada, posto que ambas as ligas reunem pessoas do Brasil inteiro. Rafael Goncalves, o entao carnavalesco da Escola Virtual da Amazonia, filiada a Liesv, chegou a afirmar, em curso de curta duracao ministrado na Faculdade de Letras da UFRJ, em dezembro de 2012, que a Liesv reune mais cariocas do que paulistas, nao passando a afirmacao das autoras de um "mito semeado por pessoas que pouco entendem da Liesv".
Nesse ponto, e interessante atentar para algo discutido por Alvarenga e Frade (2011, p. 160): o universo do carnaval virtual nao fica restrito aos limites digitais das telas dos computadores, como pode parecer a primeira vista; ao contrario, o discurso convidativo das ligas destaca o sociointeracionismo real, algo tambem apontado pelo mediador Ricardo Barbieri e explicado pelas pesquisadoras: "Barbieri da como exemplo o fato de ceder sua propria casa para a apuracao dos votos das escolas, assim como para servir de base no acompanhamento dos desfiles." A questao se torna ainda mais complexa quando o trabalho de carnavalescos e compositores vem a luz, uma vez que as obras podem nao ser compostas no ambiente virtual, mas no plano da materialidade (mediante o uso de papeis, lapis, tintas, cavaquinhos e pandeiros). As autoras usam como exemplo as festas de lancamento dos CDs de sambas de enredo (Figura 1), clara imitacao de um modelo de evento bastante festejado, nos ultimos anos, no universo do carnaval real. O uso de "avatares" tambem ajuda a ilustrar a questao: os carnavalescos inserem recortes (rostos, geralmente) de fotografias de personalidades reais nos desenhos das fantasias, mesclando "realidade" e "virtualidade" (a Escola de Samba Virtual Ociosos de Gericino, da Virtuafolia, usou avatares "reais" em todas as fantasias do carnaval de 2010; o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira (Figura 2) era formado pelos entao presidenciaveis Dilma Rousseff e Jose Serra caracterizados como Eva e Adao, o que gerou risos e elogios devido ao bom humor da escola e do carnavalesco Andre Bonatte). Nos termos de Ricardo Barbieri, quando se trata de personalidades ligadas ao "mundo do samba", "as identificacoes por imagens provocam naqueles que sao representados a sensacao de estar na passarela digital, quica com a mesma empolgacao daqueles que desfilam na passarela real" (p. 162).
O mergulho no universo da cyberfolia revelou, aos poucos, que, apesar das possibilidades de criacao praticamente ilimitadas asseguradas pelo suporte digital (e possivel desenhar fantasias de tamanhos irreais, projetar alegorias voadoras, desenvolver enredos esdruxulos, etc. (7)), a crenca majoritaria, mesmo no interior da "liga brincalhona", era a de que somente as escolas que apresentassem um "trabalho serio" terminariam por disputar o titulo de campea. Daniel Reis muito falava em "equilibrio" entre brincadeira e qualidade tecnica, ou seja: a Pura Soberba deveria apresentar enredos divertidos, porem embasados; fantasias e alegorias bem-humoradas, porem tambem realizadas a perfeicao do ponto de vista tecnico. Consciente desse pensamento, com a escola ainda no Grupo de Acesso, desenvolvi, junto ao primeiro carnavalesco da agremiacao (Leonardo Pizziolo, arquiteto residente em Minas Gerais), enredo de teor parodico com base na obra literaria homonima de Jose Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta: Terra Papagalli--os dez mandamentos para vencer no Brasil; a escola foi campea e ascendeu ao Grupo de Elite. No Carnaval de 2009, o enredo defendido foi De nariz em pe, eu sou Soberbo! Ha muito tempo, do outro lado da Guanabara ..., sobre a fundacao de Niteroi e o imaginario edenico existente na cidade. A primeira parte do titulo e um trecho do refrao do primeiro samba de enredo da entidade virtual, ou seja, uma auto-homenagem--algo recorrente em composicoes do carnaval real. O desfile foi bem avaliado e conquistou o segundo lugar.
Para o desenvolvimento visual da narrativa (a confeccao dos desenhos de alegorias e fantasias), alem de consultar os folhetos coletados, fundamental foi uma viagem empreendida a Pernambuco, em janeiro de 2010. Na ocasiao, fui a feira de Caruaru, patrimonio imaterial pelo Iphan, onde esta localizado o Museu do Cordel. La, entrevistei cordelistas e xilogravuristas com muito a contar e ensinar aos transeuntes. Na cidade de Bezerros, a obra de J. Borges, considerado o maior xilogravurista do Brasil, foi uma revelacao estetica: a concepcao visual do desfile nao poderia seguir outra linguagem. O desafio foi trabalhar a tridimensionalidade das formas (em roupas ou esculturas) a partir de desenhos bidimensionais e geralmente monocromaticos (pretos). Diante dessa dificuldade, optei por utilizar como base cromatica os tons costumeiramente observaveis no papel dos folhetos (amarelo, rosa, azul e verde, em variantes claras). E interessante notar, novamente e com visao autocritica, que o horizonte criativo era o do carnaval real; eu nutria a preocupacao com a tridimensionalidade das esculturas, pecas essas que jamais foram esculpidas.
(4) Eduardo Goncalves foi o primeiro carnavalesco a levar para a Marques de Sapu cai uma referencia explicita ao carnaval virtual; no enredo desenvolvido para a Paraiso do Tuiuti, em 2010, releitura de "Eneida, o pierro esta de volta!" (originalmente desenvolvido por Julio Mattos, em 1990, na mesma escola de samba), mencionou a "folia virtual" ao projetar no tempo a visao inquieta da autora de Historia do carnaval carioca. Disponivel em: http:// www.galeriadosamba.com.br/camavais/paraiso-do- tuiuti/2010/20. Acesso em 12/03/2014.
Caption: Figura 1: Capa do CD de sambas de enredo da Virtuafolia para o Carnaval Virtual de 2011, com a imagem do abre-alas da Pura Soberba, a escola campea do ano anterior. Observa-se, aqui, a adaptacao de um modelo do carnaval real para a cyberfolia (acervo do autor)
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